V
Finnegan precisava daquele tempo longe do escritório. Ficar confinado no mesmo lugar estagnava o pensamento. Mesmo assim, apesar de todas a mudanças de estratégia, não conseguia andar com o caso há meses. Aquela mudança de cenário era um ato de desespero.
O café na cobertura do The Shard proporcionava uma belíssima vista de Londres. Apesar de nunca ter alimentado nenhum amor pelo povo inglês, tinha que admitir o espetáculo da capital. Muitos metros abaixo, o Tâmisa serpenteava pelos prédios e pontes. A London Eye girava lenta em uma de suas margens, e o Big Ben, mesmo tão longe dali, ainda se fazia presente com o som de suas badaladas.
Um garçom serviu a segunda xícara de café daquela manhã. Todo o serviço era silencioso e pouco invasivo. Aquela era outra vantagem daquele café: acima de todos, e longe dos olhos curiosos. Finnegan tinha abertos diante dele uma série de arquivos e documentos, muitos contendo dados confidenciais. As mesas ao seu redor estavam vazias. Eram apenas ele e os arquivos, e todas as perguntas não-respondidas.
Bem adiante, a foto de Isaac Danpora o encarava com aquele sorriso acanhado, quase bobo, como uma imagem viva saindo da pasta que continha o seu perfil. Quando o conheceu, não imaginou que seria de grande utilidade. Mas em pouco tempo entendeu o motivo do MI6 mantê-lo como informante. O garoto era jovem, mas sua mente era como uma biblioteca inteira - uma biblioteca inexistente na internet, cujos livros jamais foram publicados, e cujo conhecimento estava fora do alcance da maior parte da população. Foi Isaac quem mostrou o caminho para as novas pistas sobre o paradeiro dos seus pais. Foi ele quem o guiou até o rastro dos Filhos do Ancestral. Isaac era tão instrumental no seu caso, que tarde demais Finnegan entendeu que dependia dele. Quando o garoto sumiu, seis meses atrás, o caso estagnou. Inúmeras pistas, nenhuma conclusão. Estava preso em uma longa espera.
Tamborilou a caneta pela mesa. Passeou o olhar pelos documentos. Informantes; relatórios; um dossiê dos Filhos do Ancestral, com o pouco de informação que tinham. Eram um culto religioso? Alguma espécie de clube de elite, dedicado a satisfazer os desejos esdrúxulos do um por cento topo da população? Estavam, afinal, conectados aos sumiços reportados por toda Londres?
Estavam conectados ao desaparecimento dos seus pais?
Finnegan notou com a visão periférica que a televisão do café exibia uma propaganda familiar. O som da TV estava no mudo para dar lugar à musica ambiente, mas a propaganda era obviamente do restaurante Greenhouse. O chef, vestido no seu uniforme branco tradicional, falava para a câmera, sorridente, destilando o novo menu do estabelecimento. Há não muito tempo atrás, seria a sua mãe ali. Seu sorriso perfeito, a voz que ele tinha medo de estar fugindo da sua memória. O Greenhouse havia finalmente trocado a propaganda e agora exibia seu novo chef. Por quase um ano após o desaparecimento, Finnegan ainda via sua mãe na TV de tempos em tempos, apresentando o cardápio do restaurante cuja cozinha um dia comandou.
O celular tocou. Era George.
"Temos uma nova pista", falou o amigo do MI6.
"Desembucha".
"Tanya voltou. Quer nos encontrar no Chaopraya. Hoje".
"Tanya? Sério?"
"Yup. As vezes os deuses estão do nosso lado, Finn. Ou o que quer que esteja nos acompanhando nesse caso. Me encontra no escritório às um-meia-zero-zero para o Briefing".
Tanya era a sua informante mais promissora, e toda a equipe envolvida no caso dos Filhos do Ancestral estava em frangalhos achando que ela havia sido queimada. Ela trabalhava como modelo e acompanhante de luxo para um agente irlandês de pouca estatura e muito ego chamado Emmet "Três Dedos". A investigação que fizeram sugeria que Emmet tinha contato com os Filhos do Ancestral, e que fornecia modelos constantemente para as festas extravagantes do grupo. O MI6 não achava que conseguiria a cooperação de Emmet - e Finnegan, sendo ele próprio irlandês e depois de conhecer pessoalmente a figura, achava o mesmo. Tanya, por outro lado, era de conversa fácil e sua moeda de troca era o bom e velho dinheiro. Quanto mais dinheiro, mais ela falava.
Tanya trabalhou para eles durante meses até que finalmente o momento chegou. Uma grande festa estava para acontecer. Emmet movimentou um número incomum de suas modelos, e Tanya foi uma das escolhidas. Finnegan e George decidiram arriscar: mandaram a informante para a festa com pontos de escuta e receptores que ela poderia implantar no local. Era uma missão séria, que exigiu muito preparo e treinamento. Isso foi há cinco dias atrás. Desde então, Tanya havia sumido do mapa.
Finnegan juntou o material que tinha espalhado e guardou-o em uma pasta. Não sabia o que pensar daquele ressurgimento repentino. Pagou a conta e pegou o elevador para a garagem, mergulhado em perguntas. Destravou o Audi Q8, mas antes de entrar verificou o porta-malas. A M16 estava lá, com alguma munição. Sua Desert Eagle descansava ao lado, na caixa. Finnegan a trouxe para o coldre velado que carregava sob a camisa.
Sentiu-se mais seguro para seguir em frente com o que prometia ser um longo dia.